Transtornos funcionais do trato gastrointestinal

Introdução

Os transtornos funcionais do trato gastrointestinal (TGI) são distúrbios comuns na prática clínica, frequentemente subdiagnosticados, caracterizados por alterações nas funções normais do intestino sem uma causa orgânica detectável. A dispepsia funcional e a síndrome do intestino irritável (SII) são as condições mais prevalentes. Esses transtornos têm grande impacto na qualidade de vida dos pacientes e representam um desafio diagnóstico e terapêutico, uma vez que seu manejo exige uma abordagem multidisciplinar.

Dispepsia Funcional

Conceito

A dispepsia é definida como desconforto epigástrico, com duração mínima de um mês, e pode estar associada a sintomas como náusea, empanzinamento, vômitos e pirose.

Epidemiologia

A dispepsia funcional é a forma mais comum, correspondendo a 75% dos casos de dispepsia, enquanto a dispepsia orgânica responde por 25% dos casos, estando associada a condições como úlcera péptica e neoplasias gástricas.

Classificação

A dispepsia pode ser classificada de acordo com o grau de investigação (investigada ou não investigada), sua natureza (funcional ou orgânica), e o fator etiológico (causas pépticas ou não pépticas).

Diagnóstico Diferencial

A diferenciação entre dispepsia funcional e orgânica é feita através da endoscopia digestiva alta. Na dispepsia funcional, não há lesões visíveis ao exame endoscópico, enquanto na dispepsia orgânica é possível identificar lesões como úlceras ou neoplasias.

Fatores Etiológicos

As causas não pépticas incluem:

- Gastropatias específicas (como CMV, tuberculose e doença de Crohn)

- Neoplasias gástricas

- Síndrome da má absorção

- Colelitíase

Critérios de Diagnóstico (Roma IV)

Segundo os critérios de Roma IV, o diagnóstico de dispepsia funcional é feito quando há um ou mais dos seguintes sintomas por pelo menos 3 meses nos últimos 6 meses:

- Sensação de desconforto ou plenitude pós-prandial

- Saciedade precoce

- Dor epigástrica

- Queimação epigástrica

A ausência de lesões estruturais que justifiquem os sintomas é um critério essencial.

Sinais de Alarme

Os principais sinais de alarme que sugerem uma causa orgânica para a dispepsia incluem:

- Idade > 45 anos (ou > 60 anos, segundo o Colégio Americano de Gastroenterologia)

- Disfagia ou odinofagia

- Perda de peso (> 5% nos últimos 6-12 meses)

- Anemia ou sangramento

- História familiar de câncer gástrico

Fatores de Risco

Os fatores de risco para dispepsia funcional incluem:

- Sexo feminino

- Idade avançada

- Infecção por Helicobacter pylori

- Uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs)

- Baixo nível socioeconômico

Tratamento

Estratégia "Teste e Trate"

Em pacientes com dispepsia sem sinais de alarme, recomenda-se a estratégia "teste e trate" para infecção por Helicobacter pylori. Os testes não invasivos incluem:

- Antígeno fecal

- Teste respiratório com ureia (13C)

Se o teste for positivo, deve-se realizar tratamento de erradicação da bactéria.

Tratamento Farmacológico

A primeira linha de tratamento para dispepsia funcional é o uso de inibidores de bomba de prótons (IBP), como:

- Omeprazol 20 mg/dia, por 8 semanas.

Se os sintomas persistirem, pode-se utilizar antidepressivos tricíclicos (amitriptilina 10 mg/dia) como segunda linha. Procinéticos, como domperidona, são considerados como terceira linha devido aos efeitos adversos.

Medidas Dietéticas e Comportamentais

- Refeições de menor volume e maior frequência

- Evitar alimentos desencadeantes (café, álcool, tabaco, gorduras)

Síndrome do Intestino Irritável (SII)

Conceito

A Síndrome do Intestino Irritável é uma condição funcional do intestino caracterizada por dor abdominal crônica, associada a alterações do hábito intestinal (diarreia, constipação ou ambos), sem uma causa orgânica identificável.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da SII envolve múltiplos fatores, como hipersensibilidade visceral, alteração da motilidade intestinal, distúrbios na microbiota intestinal e anormalidades no eixo cérebro-intestino.

Diagnóstico

Os critérios diagnósticos da SII, baseados nos critérios de Roma IV, incluem:

- Dor abdominal recorrente por pelo menos 3 dias por mês nos últimos 3 meses

- Associação com dois ou mais dos seguintes critérios:

  - Alívio da dor com evacuação

  - Alteração na consistência das fezes

  - Alteração na frequência das fezes

Subtipos de SII

A SII pode ser classificada em:

- SII com predomínio de diarreia

- SII com predomínio de constipação

- SII mista

Tratamento

Suplementação de Fibras

- Pacientes com constipação devem utilizar fibras solúveis (psílio), enquanto aqueles com diarreia devem evitar fibras insolúveis.

Medicamentos

- Loperamida para SII com diarreia.

- Antiespasmódicos (mebeverina, brometo de pinavério) para alívio da dor abdominal.

- Antidepressivos tricíclicos (amitriptilina) em baixas doses podem ser usados para modulação da dor visceral.

Dieta FODMAP

A dieta pobre em FODMAP (oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis) é uma abordagem recomendada para pacientes que não respondem a outras medidas dietéticas.

Exames Complementares

A colonoscopia é indicada para excluir causas orgânicas em pacientes com SII que apresentam sinais de alarme, como:

- Sangramento gastrointestinal

- Anemia inexplicada

- História familiar de câncer colorretal

Pontos Importantes

1. A dispepsia funcional representa 75% dos casos de dispepsia, sendo diferenciada da dispepsia orgânica pela ausência de lesões visíveis na endoscopia.

2. A estratégia "teste e trate" para Helicobacter pylori é recomendada para pacientes com dispepsia sem sinais de alarme.

3. O tratamento de primeira linha para dispepsia funcional é feito com IBP, enquanto antidepressivos e procinéticos são opções de segunda e terceira linha, respectivamente.

4. A Síndrome do Intestino Irritável (SII) é uma condição multifatorial, com subtipos definidos pelo hábito intestinal.

5. Fibras solúveis são indicadas para constipação, e loperamida é recomendada para diarreia na SII.

6. A dieta FODMAP pode ser eficaz em pacientes com SII que não respondem a outras abordagens.

Referências

1. American College of Gastroenterology Clinical Guidelines on Functional Gastrointestinal Disorders, 2021.

2. Rome IV Diagnostic Criteria for Functional Gastrointestinal Disorders, 2016.

3. IV Consenso Brasileiro sobre Helicobacter pylori, 2018.

4. British Society of Gastroenterology Guidelines on Irritable Bowel Syndrome, 2020.