Comentário:
Um estudo inédito e interessante, publicado recentemente no periódico Nature, traz novas informações sobre aspectos genômicos que podem explicar por que algumas pessoas não apresentam sintomas após serem infectadas pelo SARS-CoV-2. Além disso, dois artigos recentes (abstracts aqui e aqui) também discutiram a genética por trás da covid-19 longa. Essas pesquisas apresentam análises genéticas dos extremos do espectro clínico da doença causada pelo SARS-CoV-2: de um lado, pacientes assintomáticos; do outro, indivíduos que evoluem com uma síndrome crônica e incapacitante.
Aspectos genômicos dos pacientes assintomáticos
Desde o início da pandemia, tive muito interesse pela covid-19 assintomática por seu papel fundamental na disseminação do vírus e pela probabilidade de que a genética protegesse alguns indivíduos infectados de adoecerem. Meu colega Danny Oran e eu já escrevemos bastante sobre esse assunto, inclusive publicamos artigos de revisão no periódico Annals of Internal Medicine que mostraram uma prevalência geral de aproximadamente 30% de pacientes assintomáticos. Todos já nos perguntamos por que algumas pessoas, mesmo após contato próximo e exposição prolongada a indivíduos com quadro evidente de covid-19, não apresentam sintomas da doença em nenhum momento.
Para identificar as variantes genômicas que poderiam influenciar esses fenótipos clínicos, realiza-se um estudo de associação genômica ampla. Idealmente, define-se uma população bem caracterizada de milhares de pessoas (assintomáticas versus sintomáticas; as que evoluíram com covid-19 longa vs. as que se recuperaram totalmente). Em seguida, utiliza-se uma técnica de microarranjo genético, que analisa mais de um milhão de variantes comuns em todo o genoma para encontrar associação entre uma ou mais variantes específicas e a doença ou síndrome de interesse. Quando existe significância genômica após uma correção estatística (também chamada correção de Bonferroni), isso indica que os achados resultam de associação, não de uma relação causal. Para ajudar a estabelecer uma relação de causa e efeito, é necessário (mas não suficiente) realizar estudos funcionais que avaliem diretamente os aspectos biológicos da variante genética.
No artigo publicado no periódico Nature por Jill Hollenbach e seus colaboradores, três populações clínicas foram avaliadas. O principal grupo de pacientes analisados na pesquisa era proveniente de um estudo feito com um aplicativo de smartphone que rastreou sintomas e desfechos da covid-19 em quase 30 mil participantes (mais de 1.400 indivíduos assintomáticos com teste positivo). A confirmação dos achados foi obtida em outras duas coortes, nas quais um locus do antígeno leucocitário humano (HLA) — o HLA-B*15:01 — foi fortemente associado à ausência de sintomas da doença.
A razão de chances de um quadro assintomático em relação ao sintomático foi de aproximadamente 2,5 considerando esse alelo específico. Esse valor se manteve mesmo após ajustes para comorbidades e diferenças de sexo e idade. Além disso, a magnitude e a direcionalidade do efeito coincidiram nas três populações analisadas. Os pacientes com duas cópias do alelo HLA-B*15:01 tinham oito vezes mais chances de permanecer assintomáticos, reforçando a importância desse achado, com uma relação diretamente proporcional.
A associação relacionada ao alelo do HLA foi analisada com maior profundidade em estudos funcionais com células T (repertório de células T e receptores de células T), analisando indivíduos saudáveis que tinham o alelo protetor e não estavam infectados pelo SARS-CoV-2 (amostras pré-pandêmicas), mas que foram previamente expostos a outros coronavírus com sequências genéticas compartilhadas com o SARS-CoV-2 (epítopos NQK-Q8 homólogos). Consequentemente, é provável que a reatividade cruzada das células T seja a explicação biológica por trás da proteção contra a forma sintomática da covid-19.
Essa hipótese foi avaliada posteriormente com a análise de estruturas cristalinas do HLA-B*15:01, que mostrou que o peptídeo NQK-Q8 — proveniente do SARS-CoV-2 — conseguia estabilizar a molécula do alelo do HLA da mesma forma que o NQK-A8 de outros coronavírus e ambos tinham a mesma configuração espacial. Isso fez com que a hipótese da reatividade cruzada das células T de memória avançasse um pouco mais.
Uma grande limitação do estudo foi que os achados foram vistos apenas em pessoas de ascendência europeia. Considerando o pequeno número de indivíduos negros avaliados, os dados sugerem que talvez essas mesmas características se apliquem a pessoas com outras ascendências. É difícil definir com precisão o fenótipo do estado assintomático, pois algumas pessoas apresentam sintomas tão leves que nem chegam a ser reconhecidos, ou iniciam com sintomas mais tardiamente. Apesar disso, os autores fizeram o possível para garantir que os relatos dos pacientes sobre o próprio quadro clínico fossem genuínos. Existem paralelos importantes dos achados com pesquisas anteriores sobre o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e os vírus da hepatite B e C, nos quais alelos específicos do HLA estão implicados no controle da carga viral. Em última análise, identificar os fundamentos da reatividade cruzada de células T e da proteção contra a covid-19 tem implicações no desenvolvimento de vacinas e tratamentos mais eficazes.
Aspectos genômicos da covid-19 longa
Ainda em pré-impressão, um estudo de associação genômica ampla publicado por Lammi et al. analisou mais de 6.400 pessoas com covid-19 longa e mais de 1 milhão de casos controle, provenientes de 24 estudos realizados em 16 países, contendo diversas comparações entre casos e controles e as respectivas razões de chances. Somente a associação com o locus do gene FOXP4 no cromossomo 6 apresentou significância estatística. Os autores também analisaram o fenótipo da associação genômica por trás da covid-19 longa por meio de critérios amplos (relatados pelo próprio paciente ou pelo médico) e restritos (confirmados por testes). Esse mesmo locus já foi associado à covid-19 grave, à função pulmonar, ao câncer e a outros fenótipos importantes. Foi verificado um aumento de 60% no risco de covid-19 longa com a variante do locus do gene FOXP4 em frequência alélica de 4,2%. Essa frequência variou consideravelmente entre pessoas com diferentes ascendências e etnias (até 36% nos asiáticos orientais), mas a associação significativa se manteve em todas elas.
O gene FOXP4, um fator de transcrição, é amplamente expresso no organismo, em quase todos os tecidos, e a variante de interesse foi associada ao aumento da expressão desse gene no pulmão e no hipotálamo. A análise dos dados de sequenciamento de célula única e de componentes reguladores do genoma ressaltou ainda mais o possível significado funcional da variante do gene FOXP4. Uma análise com randomização mendeliana ajudou a descartar o efeito confundidor da gravidade da covid-19 sobre o fenótipo da covid-19 longa e a associação ao gene FOXP4.
Embora ainda existam pessoas que neguem a existência do fenótipo da covid-19 longa, o fato de existirem diversas intervenções para tentar prevenir essa complicação, como vacinas, Paxlovid ® e metformina — já analisadas por mim e agora explicitamente verificadas em um estudo genômico —, confirma fortemente que, mesmo com uma ampla variedade de sintomas e subfenótipos, parte da suscetibilidade biológica à covid-19 longa pode ser identificada.
Sim, a covid-19 longa tem uma base genômica e múltiplas formas de prevenção, e saber tudo isso vai muito além de apenas contabilizar o grande contingente de pacientes acometidos. Todas essas características apontam incontestavelmente para a existência dessa entidade clínica. Se mais estudos replicarem a via do gene FOXP4 e aprofundarem os estudos funcionais iniciais, é possível que seja criado um caminho para um tratamento eficaz.
O outro estudo genômico de associação ampla sobre a covid-19 longa também está em pré-impressão, tendo sido publicado por Krystyna Taylor e seus colaboradores, todos funcionários da empresa britânica PrecisionLife. Em contraste com o artigo sobre o FOXP4, nessa pesquisa não foram encontrados loci genéticos com alto nível de significância estatística. O estudo analisou tanto a covid-19 grave como a covid-19 longa (477 casos e 909 controles nesta última).
No entanto, a pesquisa sugeriu que 73 variantes podem estar relacionados ao quadro prolongado, a maioria delas com associações já estabelecidas a doenças neurológicas ou cardiometabólicas, e nove das variantes se sobrepõem a uma associação com a encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica. Do ponto de vista metodológico, esse é um estudo muito menos robusto do que o do FOXP4, o que ajuda a diferenciar o primeiro como um verdadeiro estudo genômico de associação ampla.
Contextualizando
Após mais de três anos de exposição ao SARS-CoV-2, estamos vendo um progresso extremamente importante na compreensão da acentuada heterogeneidade relacionada aos motivos por que algumas pessoas, mesmo após evidências de infecção, não apresentam sintomas, enquanto outras evoluem com um quadro prolongado, muitas vezes consideravelmente incapacitante. Nosso entendimento dos aspectos biológicos por trás da proteção contra a forma clínica da covid-19 ou do aumento da suscetibilidade à covid-19 longa continua incompleto, mas estamos vendo alguns avanços importantes. O achado relacionado ao alelo protetor HLA-B*15:01 é especialmente impressionante, e os experimentos funcionais com células T tentando identificar uma relação de causa e efeito indicam que o impacto de duas cópias dessa variante levam a oito vezes mais chances de um paciente permanecer assintomático.
Por outro lado, a descoberta da variante do gene FOXP4, embora resulte da agregação de muitos estudos e mostre um aumento consistente de 60% no risco de covid-19 longa, permanece mais como uma associação possível do que como uma variante causal estabelecida. Esses estudos são de difícil realização, por envolverem a fenotipagem precisa de inúmeros participantes (os fenótipos de covid-19 assintomática ou longa não são objetivos), obtenção de amostras biológicas, análise de dados genômicos e realização de estudos funcionais para verificar quais variantes gênicas são estatisticamente significativas.
No entanto, essas pesquisas têm nos ajudado a chegar aos fundamentos dessas alterações, e, especialmente no caso da covid-19 assintomática, têm nos dado um norte para desenvolver melhores tratamentos e vacinas no futuro. Outros loci gênicos deverão ser validados nos dois quadros à medida que mais estudos genômicos de associação ampla e estudos funcionais forem publicados. É emocionante descobrir por que a nossa resposta a esse vírus é tão variável e, quem sabe, um progresso constante nos ajudará a saber mais sobre como podemos evitar que as pessoas adoeçam ou como prevenir o quadro crônico causado pelo novo coronavírus.
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape